A segunda edição dos Encontros do Nadadouro, realizada nos dias 22 e 23 de Março de 2025, reuniu na Freguesia de Nadadouro activistas, académicos, amigos e camaradas para debater temas em torno do anarquismo, libertarismo e cooperativismo. O evento estruturou-se em três sessões principais que proporcionaram a criação de um espaço de debate aberto sobre os desafios e potencialidades dos ideais libertários e anarquistas. Entre a memória de experiências históricas de autogestão, as críticas à censura mediática contemporânea e a exploração de caminhos futuros para a acção colectiva, o Encontros reforçou a importância de manter vivas as práticas de resistência, criação autónoma e solidariedade, face a um sistema cada vez mais uniformizado e fechado a vozes dissidentes.
1. Sessão “Anarquismo e Cooperativismo”
Convidados: Diogo Duarte e Filipe Olival
Nesta sessão foram discutidas as intersecções entre anarquismo e cooperativismo, com particular destaque para modelos autogeridos e a criação de alternativas económicas fora das estruturas capitalistas tradicionais. Os oradores destacaram a importância das cooperativas como espaços de experimentação e resistência, sustentando que o cooperativismo pode funcionar como uma base concreta para a construção de uma sociedade libertária que se gere horizontalmente com base na autonomia e solidariedade.
Diogo Duarte, autor do livro “O anarquismo e a arte de governar”, aproveitou para abordar o contexto histórico do anarquismo em Portugal, destacando o seu papel central nas primeiras décadas do século XX como uma das correntes políticas mais activas. Começou por oferecer uma análise aprofundada do anarquismo português, destacando-o como uma cultura política activa e inovadora, um projecto de transformação social que propunha uma ruptura com as instituições dominantes através do desenvolvimento de novos saberes e práticas e de uma "arte de governar" própria, baseada na solidariedade, liberdade individual e igualdade social. Nesse contexto salientou a importância da educação libertária da qual é exemplo a Escola Oficina nº 1, em Lisboa, que promovia uma pedagogia centrada no aluno, sem métodos coercivos, visando formar indivíduos críticos e autónomos.
Diogo Duarte discutiu também a eventual desintegração desse movimento anarquista facilitada pela sua fragmentação em diversos grupos e tendências com pouca capacidade de coordenação e cooperação entre si e pelo ímpeto nacionalista e militarista da Primeira República. O nacionalismo republicano e a manutenção da política colonial, ao qual os anarquistas se opunham, serviu para mascarar os graves problemas estruturais do país e eventualmente levou à ascensão dos militares ao poder e que culminou na instauração da Ditadura Militar em 28 de maio de 1926.
2. Sessão “Libertarismo na Imprensa e nos Media”
Convidados: Flávio Gonçalves e Miguel Madeira
Nesta sessão foi explorada a histórica ligação entre o anarquismo e a imprensa, bem como os desafios enfrentados atualmente na comunicação social.
Flávio Gonçalves, activista sindical e fundador da Edições Libertária, começou por relembrar a importância dos tipógrafos anarquistas do século XIX e início do século XX, que dominavam a leitura, escrita e produção gráfica, o que lhes permitiu criar e distribuir jornais e panfletos de forma autónoma e eficaz, fugindo à censura e promovendo a educação e disseminação do anarquismo. Exemplos históricos como o Freedom (Inglaterra), Mother Earth (EUA) e Le Révolté (França) foram mencionados nesse contexto. E o jornal A Batalha foi usado como exemplo português de resistência editorial, o único jornal nacional que continuava a ser publicado mesmo em contextos de greve, dado ser feito por e para tipógrafos.
Em contraposição, destacou a actual ausência de anarquistas nos media tradicionais. Mesmo com a expansão das plataformas digitais, a presença do movimento anarquista continua marginal. Flávio Gonçalves argumentou que a exclusão sistemática das vozes anarquistas dos jornais, rádios e televisões não é um acidente, mas um reflexo das estruturas de poder na sociedade e nos meios de comunicação. Apesar de as redes sociais e a internet em geral se terem tornado os meios divulgação e comunicação privilegiados, como sucedeu outrora com os panfletos e jornais independentes, os obstáculos mantêm-se já que o alcance é cada vez mais limitado pelas plataformas comerciais, que exigem pagamento para exibir conteúdo até mesmo aos próprios seguidores. Esta forma de censura algorítmica foi apontada como uma nova forma de repressão disfarçada.
Flávio Gonçalves aproveitou também para denunciar a burocratização e elitização do jornalismo em Portugal, onde a obtenção da carteira de jornalista e os registos legais criaram barreiras de classe que dificultam o aparecimento de novos meios de comunicação. Essa realidade, diz, leva a uma situação onde só há liberdade de imprensa para quem tem recursos. Apesar destes desafios, há exemplos de resistência. Flávio Gonçalves deu como exemplo os projetos Lisboa Para Pessoas e a revista Shifter, que embora não sejam exclusivamente anarquistas, acolhem vozes anarquistas e têm sobrevivido através de crowdfunding e subscrições. No entanto, a sustentabilidade destes projetos em contextos como o português é extremamente difícil, dada a dimensão do mercado e a falta de uma cultura forte de apoio mútuo.
Já Miguel Madeira, do Blogue Vias de Facto, reflectiu sobre o papel da internet na mobilização de movimentos sociais e o seu impacto no ecossistema mediático, abordando tanto o potencial libertário inicial da web como a sua posterior centralização. A sua intervenção focou-se no papel da internet na auto-organização de movimentos sociais de protesto e na forma como tem sido usada recentemente para mobilizar forças políticas reaccionárias.
Miguel Madeira começou por recordar a fase inicial da internet, quando era amplamente descentralizada, aberta e de cariz não-comercial, um ambiente que inspirava optimismo entre libertários e progressistas, que viam na internet uma ferramenta inédita para a criação de uma esfera pública autónoma, sem hierarquias, e propensa à emergência de novas formas de democracia directa. Segundo Miguel Madeira, o auge dessa fase terá ocorrido entre 2010 e 2011, com eventos como a Primavera Árabe, o movimento Occupy Wall Street, os Indignados em Espanha e, em Portugal, a manifestação da Geração à Rasca — todos marcados por uma mobilização feita essencialmente através de meios digitais. Nesse período, muitos viam a internet como um espaço libertário por excelência, onde qualquer indivíduo ou grupo pequeno poderia convocar mobilizações de massas sem necessidade de mediação institucional. Essa percepção reflectia-se também na cultura digital da época, onde era comum associar os programadores informáticos a posições libertárias — fossem elas de direita (capitalistas anti-estatais) ou de esquerda (anarquistas tecnófilos e anti-autoritários).
Contudo, a partir de meados da década de 2010, especialmente após o Brexit e a eleição de Donald Trump, este tecno-optimismo foi sendo substituído por uma visão crítica e até pessimista. A discussão passou a apontar para o domínio da internet por parte de grandes plataformas privadas (Facebook, Twitter, etc.), cujos algoritmos favorecem a desinformação e o discurso de ódio. Nesse contexto, a internet deixou de ser vista como uma promessa libertária e passou a ser um terreno de manipulação e radicalização política — em particular por forças da extrema-direita. No entanto, segundo Miguel Madeira, é injusto dizer que a internet é o motor principal de crescimento da extrema-direita, já que muito dos apoiantes e eleitores desta nova extrema-direita são geralmente idosos e pessoas com menor envolvimento digital.
Por fim, refletiu sobre a transição de uma internet aberta para os chamados “walled gardens” (como Facebook ou Twitter), que alterou profundamente as dinâmicas de participação e controlo: as plataformas privadas passaram a ter poder para decidir o que é visível, quem pode publicar, e que conteúdos são promovidos. Neste ambiente continua a ser difícil encontrar alternativas credíveis. Embora existam redes sociais distribuídas como o Mastodon, estas continuam sem conquistar a necessária adesão massiva. Concluiu que muitas das atuais críticas à internet centralizada resultam da sobreposição de diferentes visões de esquerda: umas nostálgicas da utopia anarquista da web original, outras preocupadas sobretudo com a regulação de conteúdos e a perda de hegemonia política.
3. Sessão “Que futuro?”
Convidados: António Pedro Dores e Paulo M. Costa
Esta sessão focou-se em projecções e reflexões sobre os rumos possíveis para os ideais libertários, especialmente face aos desafios contemporâneos como o autoritarismo digital, a mercantilização da informação e a exclusão de narrativas alternativas do debate público. Foram analisadas possíveis estratégias para revitalizar a acção política libertária em contextos locais e globais, realçando a necessidade de reconstruir espaços comunitários, físicos e digitais, para fomentar a participação directa. Durante esta sessão discutiu-se ainda a tragédia do povo palestiniano e o genocídio levado a cabo por Israel em Gaza, os sucessos e insucessos do movimento Boicote-Desinvestimento-Sanções (BDS), o trabalho desenvolvido pelo Comité de Solidariedade com a Palestina e as possíveis linhas de acção futura do movimento de solidariedade.
Na sua intervenção António Pedro Dores, professor aposentado do ISCTE, começou por abordar a actual crise civilizacional marcada pela escalada belicista de índole imperial. Apontou o dedo às elites ocidentais que nos colocaram numa trajetória rumo a uma possível III Grande Guerra, isto é, a aliança entre política, capital e guerra como forma organizadas de poder. Segundo António Pedro Dores isto é possível porque no quadro do Estado-Nação é fácil para as elites mobilizarem a colaboração dos povos contra os seus próprios interesses. Isso ocorre porque as gentes foram educadas para obedecer, vivem endividadas e são mantidas constantemente sob medo e repressão, como se viu na gestão autoritária da pandemia da COVID-19 e na cada vez mais frequente criminalização de grupos estigmatizados e opositores políticos. Foi esse contexto que facilitou a recente ascensão de discursos de ódio e práticas neonazi-fascistas no espaço público, traçando um paralelo histórico com outras épocas de opressão e desorientação. Salientou ainda que a solução passa por mudar a forma de pensar. Não de fuga para o irracional, mas de repensar criticamente os modos de análise e entendimento do mundo. Para florescer, é preciso reconhecer os erros do pensamento atual e aprender a pensar de forma radicalmente diferente.
Na segunda parte da sua intervenção, António Pedro Dores apelou à recuperação da fraternidade, resgatando-a da subjugação a que foi submetida pela lógica material da liberdade promovida pelo (neo)liberalismo. Argumentou que a civilização actual é brutal, tanto na sua forma de educar como na forma de pensar, sendo, por isso, urgente reaprender a pensar de forma crítica e criativa. Destacou também o crescente papel da Inteligência Artificial, não como ferramenta neutra, mas como nova forma de imposição de normas de pensamento e deu como exemplo a sua experiência em produzir cartazes com recurso a IA, tendo notado que a mensagem original sobre a centralidade da fraternidade foi corrigida pela IA para reforçar o discurso dominante da igualdade como via para a fraternidade – sintomático das normas de pensamento impostas algoritmicamente. Assim, António Pedro Dores considerou ser urgente desconstruir os hábitos mentais impostos pela educação formal, onde a ciência é centrípeta, domesticada, e onde a obediência é inculcada desde cedo. Urge também recuperar a fraternidade como valor ético, tornando-a requisito obrigatório de participação na vida pública.
Por fim, propôs a criação de uma comunidade de aprendizagem como prolongamento do espírito crítico e colaborativo do Encontros do Nadadouro. Uma comunidade que teria como missão apoiar projectos de vida individuais através de uma estrutura de tutoria personalizada e acesso a pessoas com diferentes conhecimentos. A implantação deste modelo pressupõe que cada participante assuma responsabilidade por projectos próprios, com prazos definidos, num ambiente de aprendizagem contínua e partilhada.
Paulo M. Costa aproveitou a sua intervenção para fazer um apanhado das várias acções levadas a cabo pelo Comité de Solidariedade com a Palestina/BDS Portugal visando sensibilizar a sociedade portuguesa para a situação na Palestina e pressionar o governo português e instituições a adoptarem medidas concretas de apoio aos direitos do povo palestiniano. O Comité é uma organização que promove a campanha internacional pacífica de BDS contra Israel, visando o fim da ocupação e colonização dos territórios palestinianos, igualdade de direitos para os cidadãos árabes de Israel e respeito pelo direito de retorno dos refugiados palestinianos. Entre as suas acções destaca-se a interrupção do concerto do grupo israelita Jerusalem Quartet na Fundação Calouste Gulbenkian e a disrupção da conferência "Exportar & Investir: Israel". O Comité é também presença assídua em manifestações e vigílias de solidariedade com a Palestina em várias cidades portuguesas e, em 2022, solicitou à Procuradoria-Geral da República que investigasse o empresário israelita Roman Abramovich por alegada cumplicidade em crimes de guerra cometidos contra famílias palestinianas nas zonas de Jerusalém ocupada. Finalmente, Paulo Costa destacou o objectivo do Comité em reunir com a direção da RTP para discutir a exclusão da emissora israelita KAN do Festival Eurovisão da Canção. O Comité acredita que o canal KAN é cúmplice de violações dos direitos humanos contra os palestinianos, incluindo genocídio e apartheid, e pretendia apelar à RTP para agir em coerência com a posição tomada em 2022 que levou à exclusão da Rússia
4. Apresentações de outros participantes
“Machico, 1974 – O Breve Verão da Democracia Popular” por Ivo Melim
Ivo Melim, um dos organizadores dos Encontros do Nadadouro, trouxe à discussão uma experiência histórica pouco conhecida: a breve experiência de democracia popular em Machico, Madeira, após a Revolução dos Cravos de 1974. Com o colapso da administração local, os habitantes de Machico organizaram-se em assembleias de bairro, dando origem a uma forma espontânea de autogoverno popular. O ponto alto desta experiência foi a criação do Centro de Informação Popular de Machico, que funcionava como uma espécie de parlamento do povo. Representantes eleitos por bairros e fábricas decidiam em conjunto sobre assuntos locais, como abertura de caminhos, construção de escolas, bibliotecas, jardins-de-infância e formação de cooperativas.
Este exemplo real de democracia directa reflectia os ideais anarquistas de organização descentralizada e poder popular. No entanto, vista como uma ameaça pelo poder central, a experiência foi abruptamente terminada em Setembro de 1975 pelo governador interino da Madeira, o brigadeiro Carlos de Azeredo, com o apoio da Igreja, sob o argumento de combater “poderes paralelos”. Apesar da sua curta duração, o caso de Machico é visto como um paradigma histórico da viabilidade de modelos alternativos de organização social baseados em autogestão, participação e solidariedade — uma verdadeira encarnação do princípio “governo do povo, pelo povo e para o povo”.
“38C3” por Marta Setúbal
Marta Setúbal, também organizadora do Encontros, apresentou uma visão detalhada e inspiradora do 38.º Chaos Communication Congress (38C3) destacando-o como um exemplo notável de como é possível organizar um evento massivo, de elevada qualidade técnica e política, mantendo ao mesmo tempo uma estrutura de trabalho aberta, colaborativa e inteiramente baseada no voluntariado. O evento anual organizado pela Chaos Computer Club, a maior associação de hackers da Europa, junta mais de 15000 pessoas, para mais de 120 conferências e incontáveis workshops e outras acções.
A apresentação incidiu sobre como é possível organizar um evento deste tamanho e qualidade, mantendo uma estrutura aberta e flexível, que possibilita e facilita a auto-organização e, ainda, que esteja de acordo com os princípios anunciados. Foram inicialmente descritas as particularidades da organização pré-evento: planeamento das diversas equipas de produção, sistema de venda de bilhetes, preparação do programa e diversas chamadas para participação. De seguida, foi apresentado o evento em si: o tipo de actividades, a organização espacial e o complexo sistema de organização de pessoas voluntárias. Abordou ainda o princípio da cultura aberta e o acesso livre online a todo o material produzido, desde as conferências, ao software desenvolvido e utilizado para organizar, produzir e monitorizar o evento, para que outras comunidades possam servir-se. Finalmente, Marta Setúbal partilhou a experiência pessoal de participação no evento, recorrendo a impressões visuais do local, frisando a importância da diversidade, do caos e da organização na criação de conhecimento.
Proposta de 'planetA', uma 'kita próper' por João Manso.
João Manso propôs "kita" – palavra indonésia que significa "nós" de forma inclusiva – como nome para um agregador aberto, federável e colaborativo, ao estilo da wiki(pédia). Ao contrário de "kami" (nós, excluindo os outros), kita representa "tod@s nós", um princípio de comunidade partilhada e inclusiva. Este agregador teria como base um denominador mínimo comum, funcionando como definição-bandeira para práticas de transformação social. Paralelamente, introduziu o conceito de "próper" para designar tudo aquilo que é verdadeiramente sustentável, de forma integral. Próper aplica-se a processos, acções ou não-acções levadas a cabo por pessoas, que consideram os impactos em todas as dimensões da vida. A sua definição assenta no que João Manso caracterizou como Axioma do Respeito, que exige:
Respeito por si próprio (radical, a partir da raiz);
Respeito pelo outro (mútuo e recíproco);
Respeito pelo mais vasto (gratidão pelo planeta do qual fazemos parte).
Reconhecendo a complexidade de cada processo, sugeriu uma abordagem de melhoria continuada, designada por tendencialmente próper. Esta ideia está a ser desenvolvida no projeto t20r.cc, onde se explora o framework t20r, incluindo ferramentas como a matriz e a metriz, que permitem uma análise estruturada dos processos a qualquer escala.
Além do sustento e desenvolvimento, João Manso destacou a importância da exploração das relações:
Consigo próprio: uma busca por paz de espírito e alinhamento interno.
Com o outro: colaboração, comunicação e conexão.
Com o mais vasto: desfrutar e contribuir para uma cultura sustentável e aventureira.
No espírito do Encontros EdN’25, esta proposta ganha uma dimensão libertária e anarquista: um processo não-próper realiza-se sempre à custa de alguém ou de algo. Pelo contrário, quanto mais próper for um processo, mais liberdade existe na sua realização. A visão de João Manso aponta para um mundo em que a liberdade individual e colectiva se constrói através do respeito profundo e da acção consciente. A proposta de uma "kita próper" simboliza esse horizonte: uma comunidade aberta, sustentável e transformadora.